Medida Salvadora

Medida Salvadora

Patrícia Lins

O livro “No Mundo Maior”, pelo Espírito André Luiz, psicografia de Chico Xavier, é a quinta obra da coleção “A vida no mundo espiritual”; e no capítulo 14, intitulado “Medida Salvadora”, o instrutor Calderaro e sua equipe de auxílio se direcionam para um serviço de assistência que inclui dois elementos muito comuns entre as provas e expiações terrestres: viciação alcoólica e obsessão. 

A equipe de assistência havia terminado de atender ao caso Antonina, descrito no capítulo 13 da referida obra, intitulado “Psicose afetiva”, e agora estava se preparando para socorrer um Espírito em deploráveis condições físicas, psicológicas e espirituais: Antídio. 

O intuito da equipe de assistência era o de impedir a perda completa das oportunidades remissoras por parte de Antídio e valorizar o trabalho socorrista delineado até então.

 Sempre quando tratamos de um tema delicado como este, qual seja o da viciação de qualquer natureza, do suicídio ou das variadas formas de crime contra a vida, é sempre preferível mantermos uma abordagem humana, confortadora, destituída de preconceitos, que seja instrutiva, de alerta. Afinal, aprendemos com o Cristo que não nos cabe julgar a ninguém, tampouco valorar moralmente qualquer caráter ou índole, entendendo que o ser humano é pleno de potencialidades e não deve se restringir aos seus momentos infelizes. 

Nestes momentos, particularmente, gosto sempre de recordar de uma frase de Jesus a Pedro, escrita pelo Espírito Humberto de Campos, pela psicografia de Chico Xavier, na obra “Boa Nova”, capítulo 26 “A negação de Pedro”: 

“Pedro, a tua inquietação se faz credora de novos ensinamentos. (…) Ainda esta noite o galo não cantará sem que me tenhas negado por três vezes”. 

Ao que Pedro redargue:

“– Julgais-me então um espírito mau e endurecido a esse ponto?” 

E calmamente Jesus responde:

“- Não, Pedro, não te suponho ingrato ou indiferente aos meus ensinos. Mas vais aprender, ainda hoje, que o homem no mundo é mais frágil do que perverso”. 

É sempre oportuna essa recordação, porquanto ainda que sejam dadas muitas chances a qualquer um de nós, é urgente a caridade da paciência, pois evangelização é diferente de esclarecimento. 

Podemos nos esclarecer sozinhos, progredindo intelectualmente internados num quarto, através do autodidatismo pelos livros. Entretanto, para progredirmos moralmente, é indispensável estar em contato com o outro, na difícil arte da convivência. 

A evangelização, portanto, visa nos equipar de recursos para nos tornarmos cada vez mais humanos, e dentre tantas lições, instrui-nos para nos preservar de não nos julgarmos superiores pelo fato de não cometermos os mesmos equívocos nos quais flagramos nossos companheiros de marcha. Evangelização leva tempo e experiência. 

Afinal, quem nos garante que ontem essa condição que hoje condenamos não era a nossa? Ou o que nos impede de incorrer no mesmo erro no qual hoje nos fixamos pela crítica e julgamento? Ainda não somos infalíveis, e precisamos nos acautelar para não termos raiva ou nutrirmos o sentimento do “bem feito que lhe ocorrera o mal para que possa aprender”, que é um tipo de vingança. 

No caso em epígrafe, da obra de André Luiz, constatamos que os benfeitores espirituais já haviam utilizado várias estratégias de auxílio sem êxito. Haviam colaborado para que Antídio tivesse melhoras da saúde, a fim de ter espaço à reflexão e acesso a possibilidade de uma vida comedida, caso aproveitasse o ensejo. Porém, ele como tantos de nós, aproveitou o alívio para mais rapidamente voltar à irreflexão. 

E o mais belo é que Calderaro tenta buscar os atenuantes da falta, como quando comenta: “É de notar, porém, que se achava quase de todo louco”, como quem diz: “É, talvez Antídio ainda não tivesse condições de gozar de lucidez para discernir entre o bem e o mal nesta situação perturbadora em que se encontra”. 

Este ensinamento é de elevada grandeza e cabe nossa mais atenta reflexão, pois nos lembra exatamente o que é requerido do “verdadeiro homem de bem”, conforme o capítulo 17 de “O Evangelho Segundo o Espiritismo’, item 3:

“Não se compraz em procurar os defeitos dos outros, nem a pô-los em evidência. Se a necessidade o obriga a isso, procura sempre o bem que pode atenuar o mal”. 

E para nossos raciocínios, é interessante analisarmos alguns aspectos dos víciosafinal, hoje vivemos um tempo em que se fala muito de vícios, adicções. Uma boa parcela dos indivíduos somos viciados em flagelos, como drogas lícitas (álcool, açúcar) e ilícitas, com uma maior fatia para as lícitas. 

Sigmund Freud, pai da Psicanálise, já dizia, em “O mal-estar na cultura”, texto monumental de 1930, que “É impossível enfrentar a realidade o tempo todo, sem nenhum mecanismo de fuga”, sejam entorpecentes, fantasias ou elementos anestesiantes em geral. 

Sendo espíritas, podemos entender outros aspectos do vício que o materialista vulgar não tem condição de perceber, através de uma visão holística, integradora das adicções, que não se restringem ao vício do álcool, das drogas, do cigarro, mas inclui uma série de outros vícios, inclusive comportamentais, como a maledicência. 

O ser humano é um ser transdimensional, o que implica dizer que existimos em mais de uma dimensão ao mesmo tempo, e a própria a ciência ortodoxa já está admitindo isso, inclusive. 

Assim sendo, o complexo humano é formado por algumas dimensões que interagem e se influenciam mutuamente: a dimensão física (genética, biológica); a dimensão mental, psíquica ou emocional; a dimensão social, cultural ou moral; a dimensão afetiva ou relacional; a dimensão espiritual, como no caso de Antídio, em que havia a instigação de vampiros espirituais que se alimentavam da sensação proporcionada pelos fluidos metabolizados. 

Na obra “Após a tempestade”, pelo Espírito Joanna de Ângelis, psicografia de Divaldo Franco, capítulo 9 intitulado “Viciação alcoólica”, a benfeitora espiritual vai asseverar que:

“(…) Sob qualquer aspecto considerado, o vício, esse condicionamento pernicioso, deve ser combatido sem trégua desde quando e onde se aloje. (…) Surge com feição de hábito social e se instala em currículo de longo tempo, que termina por deteriorar as reservas morais. (…) Resultado da busca enganosa de prazeres ou emoções inusitados. (…) Os vitimados sistemáticos pela viciação escusam-se de abandoná-la, justificando que é um simples compromisso de fácil liberação. (…) A vinculação alcoólica, entretanto, escraviza a mente, desarmonizando-a, e envenena o corpo, deteriorando-o (…)”. 

E é importante entender este processo. 

O corpo físico é nossa vestidura carnal; a essa altura, já devemos saber que temos um corpo de carne, e não somos um corpo de carne; que somos Espíritos imortais e não que temos um espírito. 

E o períspirito, chamado pelo Apóstolo Paulo de corpo espiritual, é o corpo fluídico da alma, conforme apontado por Kardec em “A Gênese”, capítulo 1, intitulado “Caráter da revelação espírita”:

“É a interface entre o corpo físico e o espírito, é inseparável da alma, formando um dos elementos constitutivos do ser humano, veículo da transmissão do pensamento, das sensações e percepções do Espírito”. 

Por isso, quando tratamos dos vícios, falamos do Espírito que trilha por este caminho, que em algum momento decidiu utilizar, por diversas razões, uma vez que cada toxicômano (nome atribuído ao indivíduo que sofre de toxicomania, hábito patológico de ingerir substâncias tóxicas ou entorpecentes) é um, cada um se vicia por razões e caminhos completamente particulares, e não pode haver uma cura por abstinência, porque assim não se atinge a fonte da paixão. 

Por fonte da paixão queremos falar da verdadeira causa que está por trás do vício, uma vez que entendemos que o vício é apenas um sintoma de um conflito, de um mal-estar mais profundo, ainda maior. 

O Espírito cria imagens fluídicas, através do pensamento, refletido no envoltório perispirítico, como num espelho; tais fotografias dinâmicas, vitalizadas, têm uma espécie de impressão digital do Espírito imortal, de modo que ficam orbitando em sua psicosfera, e cujas vibrações dizem respeito ao estado emocional do Espírito. 

E na viciação alcoólica, há uma espécie de busca pelo desvanecimento, desaparecimento, apagamento do sujeito; ele que é desejante, conflituoso, dividido, busca um prazer, uma satisfação e no exato momento do êxtase deseja apagar a própria subjetividade, simplesmente não pensar, só usufruir. E quanto maior a angústia que se sucede, maior o imperativo de recorrer à droga para compensar a dor da sua falta. 

Por isso, o vício traz uma falsa sensação de amparo, entendimento, pertencimento. A droga aniquila aos poucos a subjetividade do sujeito, ela é objeto de satisfação e não de desejo, é uma ponte do prazer à necessidade. 

Um adicto não tem como responder: quem sou eu? O que me falta? A droga é a resposta para todas as perguntas, e o sujeito, em busca unicamente dessa satisfação, ilusória, transitória, e antecipadora de um doloroso rebote, perde a via de acesso ao seu desejo. 

Por isso era imprescindível agir, no caso de Antídio. 

E poderíamos pensar: mas o que os benfeitores poderiam fazer? Beneficia-lo novamente com a melhora da saúde? Ele já demonstrara que sozinho não conseguiria se desvencilhar… 

Por outro lado, vão deixá-lo entregue à própria sorte, com Espíritos oportunistas que estão colaborando para sua desvitalização? 

Até que Calderaro apresenta uma sábia, mas estranha ponderação; ainda na supracitada obra:

“Se da outra vez consistiu o socorro em restitui-lo ao equilíbrio orgânico possível, no momento há que agir em contrário. Convém ministrar-lhe provisória e mais acentuada desarmonia ao corpo. Neste, como em outros processos difíceis, a enfermidade retifica sempre”. 

Ou seja, muitas vezes o processo de enfermidade já é parte da saúde do Espírito, a saúde efetiva, quando, como no caso em epígrafe, nos entregamos sem defesa aos reclames do vício. 

E dentro desse assunto é importante considerar que o alcoolista não é necessariamente o que bebe todo dia, é aquele cujo consumo de álcool é incontrolável, devido à dependência física e emocional, cujo consumo crônico lhe traz mais repercussões negativas que positivas, sejam orgânicas, psicológicas ou sociais. 

Fato é que, na situação em epígrafe, pouco havia a ser feito. Havia uma multidão em vampirismo, sarcasmo e deliberada anestesia da consciência. Antídio inspirava compaixão, entretanto. Aos quarenta e cinco anos em franca decadência, mal se mantinha de pé. Estava se esgotando rapidamente. André Luiz vai descrever, na referida obra: 

“Enquanto bebia, quatro entidades embrutecidas submetiam-no aos seus desejos. Empolgavam-lhe a organização fisiológica, alternadamente, uma a uma, revezando-se para experimentar a absorção das emanações alcoólicas, no que sentiam singular prazer, inalando a bebida a volatilizar-se”. 

Quando metabolizamos a droga, os níveis de neurotransmissores caem drasticamente, e ficamos com um nível menor ao que tínhamos anteriormente de usar a droga, e aí sentimos dor, nos sentimos mal. 

Quanto maior a frequência de utilização, maior o nível de serotonina no cérebro para garantir que vamos nos sentir bem e obter o prazer, e comparativamente a outras experiências da vida mais pura e simples, estas últimas vão perdendo a graça: é isso que estamos chamando de apagamento subjetivo. 

A nossa cultura prega que é possível viver sem dor, numa proposta que estejamos o tempo todo hebetados, anestesiados, com sedativos administrados por conta própria; a nossa sociedade não produz modos de sofrer, porque não se interessa em buscar um sentido no sofrimento.

A cura precisaria vir então de dentro para fora. Contudo, o grande problema de dentro para fora é que o sujeito tem que querer, não tem como alguém querer por ele. Então, como estimulá-lo? No caso de Antídio, como Calderaro apontou, ele estava cada vez mais disposto à perversão dos sentidos, buscando, acima de tudo, a fuga de si mesmo, daí o uso do recurso drástico para que se reeducasse: a piora do quadro.

 E aí poderíamos pensar: “Poxa vida, mas não é um benfeitor espiritual? Como é que vai fazer o mal?” Mas mal sob que aspecto? 

Um benfeitor espiritual não se assemelha a um curandeiro vulgar de corpos, mas à cura real do Espírito. 

Guardemos, portanto a lição. É impressionante a sabedoria e os meios que o Alto utiliza para nos despertar para a vida, daí a importância de despertarmos sem a necessidade de tais medidas salvadoras, valorizando momentos em grupo e buscando a satisfação em atividades criativas, pois o encontro é uma fonte de prazer que droga nenhuma pode substituir, buscando outras opções de desejo, sensibilizando o ser para voltar a nutrir e investir na sua própria subjetividade, recordando que a evangelhoterapia é a psicoterapia de excelência, através da prática do bem e da caridade.

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