Francisco, um roteiro de luz

Francisco, um roteiro de luz

Por Roberto Sabbadini

Há quase oito séculos que sua melodia deixou-nos uma saudade profunda, entregou seu corpo novamente à terra mãe da qual tanto amava e viveu um relacionamento de amor e fecundidade, para sedimentar pela eternidade a sua maviosa harmonia celeste em nossos corações saudosos. Naquele dia de despedida, enquanto todos estavam chorosos de vê-lo partir para os altiplanos espirituais, como uma vela que se finda após cumprida sua tarefa de iluminar consumindo-se a si mesma, na expressão do amor que somente almas nobres compreendem e se entregam intensamente para o próximo, Francisco abraçava, definitivamente, a irmã morte com alegria e a consciência tranquila do dever cumprido.

​Arauto do Cristo Jesus, cumpriu religiosamente a tarefa que lhe foi inspirada na acústica do próprio ser, através de uma voz, quando ajoelhado defronte de um Crucifixo Bizantino, na capelinha de São Damião, na região da Úmbria, Itália, aceitou a missão de reerguer a Igreja do Mestre. Tomou mãos à massa e munido da fé que sustenta e da paciência que é companhia nas horas árduas do trabalho, foi reconstruindo pedra a pedra a capelinha. Todo encontro com Jesus provoca uma revolução interna e os nossos anseios mais recônditos afloram na perspectiva de seu cumprimento, reafirmando as expressões que alimentamos e acumulamos no decorrer do tempo. Não foi diferente com Francisco, que assimilou o pedido de maneira literal a pôs-se a trabalhar incansavelmente. Quantas vezes assim também agimos diante dos convites que a vida nos apresenta?

​Finalizada a obra material, o poverello se viu feliz a contemplar a missa inaugural tendo os seus amigos prediletos a beberem dos ensinamentos proferidos pelo Bispo Don Guido, quando a voz ressoou novamente em sua cabeça e a frase, agora incômoda, advertira; “Francisco, não vês que minha igreja ameaça ruínas, dá pressa em reconstruí-la”. Uma tristeza apoderou-se dele que virou as costas para caminhar desoladamente na estrada poeirenta que rodeava a capela. Ia distraidamente quando um mendigo solicitou-lhe uma esmola. Tendo já se casado com a dama pobreza, o jovem assiense não carregava dinheiro, embora naquele dia trouxesse junto ao seu cordão que envolvia a sua cintura uma moeda, retirou-a e ofereceu, displicentemente, ao pobre necessitado. Continuou cabisbaixo a sua jornada, até que estacou os passos, rodando sobre os calcanhares e retornando magnetizado pela figura que ao canto da estrada não retera em suas mãos a moeda dada por Francisco, pois a sua condição de leproso, sem as falanges nas mãos, não segurara a moeda que caíra no pó da estrada. O então triste jovem se ajoelhou pegando a dádiva e ao levantar-se defrontou no olhar do mendigo o mesmo que houvera faceado naquele Crucifixo Bizantinho de tempos atrás. Foi assim que o abraçou, enternecidamente, e a partir daquela data especial dedicou-se à reestruturação do Evangelho de Jesus nos corações humanos, pois compreendeu enfim o pedido do Mestre Nazareno. Um nobre sentimento desvendou-lhe o que o tempo e a razão não conseguiram, ou melhor, prepararam para o instante azado.

​Despertada a sua consciência para a verdadeira tarefa de relembrar o Evangelho de nosso Mestre Jesus, tocou pela simplicidade e fidelidade ao Cristo, as almas que junto dele viviam, jamais permitiu que o amor deixasse de ser a marca primordial na divulgação do bem e da paz. Dispensava sua atenção e carinho, indistintamente, a todos quantos dirigia sua palavra. Pregou aos passarinhos, tanto quanto evangelizou um lobo em Gubbio que trazia transtornos aos habitantes daquela cidade. Fez-se amigo e companheiro dos abastados, mas de maneira especial dos leprosos, pobres e sofredores. Dispensou sua luz a quantos teve ocasião de conhecer. Viajou a outros países imbuído do propósito de que a paz fosse uma realidade a ser vivenciada em todos os seus aspectos, entre as mais diversas etnias, culturas e ideologias. Foi, assim, um divulgador da diversidade, do ecumenismo e da certeza que o amor é o alicerce dos relacionamentos humanos.

​Francisco é um marco na história da idade média e continua sendo um divisor de águas naqueles de nós que o percebemos como roteiro de luz. Não há como ser indiferente aos seus feitos e não se envolver nas energias alcandoradas de seu magnetismo arrebatador. Rico, fez-se pobre por opção, pedra de escândalo a uma sociedade preconceituosa e desmedidamente desprezível a quem não fosse nobre de nascimento. Sonhou em auxiliar a pobreza de seu tempo e surpreendeu-se ao descobrir que a pobreza, arrebatou-o do lugar de ilusão que houvera nascido, fazendo renascer a luz imarcescível que jazia dentro de si. Enfim, encontrou a verdade que liberta no desapego da matéria que confrange a alma imortal ao esquecimento de sua real natureza.

​Abençoado seja a possibilidade de nos lançarmos, ainda que despretensiosamente, na vida desse espírito simples e humilde de coração, que exemplificou em todas as suas atitudes a fraternidade e o amor de Jesus. Deixou-nos o grande ensinamento que para ser feliz basta o desapego físico e emocional dos apetites que nos prendem à ilusão da vida na terra, ou seja, para se chegar a Deus precisamos escolher a Ele ou ao mundo. Esvaziar-se interiormente. É necessário compreendermos que enquanto um coração está ocupado com interesses pessoais não sobra espaço para que Deus se manifeste. Na ausência do querer e na confiança plena na manifestação da vida, sem qualquer desejo personalístico, encontraremos o porto seguro da paz imorredoura, consumindo o mais agradável manjar que pode ser degustado.

​Francisco ontem, hoje e sempre. Um homem que esteve além das leis que regem nossa contínua ida e vinda na carne, sublimando a arte de conviver e reformulando o relacionamento com a própria natureza. Também lidava com muita naturalidade às manifestações de sua mediunidade, recorrendo a constantes jejuns e orações solitárias em contato com os elementos telúricos. Foi uma pedra de escândalo àquela sociedade assisiense, pois de família endinheirada, abdicou completamente do conforto de seu lar, de seus pais, amigos e de toda a herança que lhe era de direito. Na praça de Santa Maria Maior, defronte do Bispo Don Guido, de seus pais e de muitos curiosos, desnudou-se entregando-se em confiança ao desconhecido, sem saber para onde ir, o que fazer, onde dormir e o que comer. O planejamento não pertencia a ele, somente a entrega completa ao chamado de Jesus. Preparemo-nos por nossa vez para que estejamos prontos e atentos quando chegar a nossa hora de renunciarmos ao nosso querer em prol da coletividade.

​Trabalhador incansável sua humildade retratava-se indiscutivelmente no atendimento aos mais necessitados e discriminados pela sociedade, como aconteceu quando ao chegar de uma longa viagem o irmão menor comunicou-lhe com galhardia e uma pitada de orgulho que expulsara dois ladrões que passaram por ali procurando comida para se saciarem, e olhavam para Francisco aguardando sua aprovação, mas emudecido Francisco não deixou dúvidas de seu constrangimento perante o relato. Ainda temos dificuldade em lidar com o que é diferente, em termos culturais e ideológicos, de etnia e religião. Qual não foi a surpresa geral quando ele começou a falar serenamente; “Eu fico imaginando que se o ladrão do calvário tivesse recebido uma réstia de amor em sua vida, de pão quando teve fome e de agasalho quando teve frio, não cometeria a ilegalidade o que o levou à cruz. Jesus já advertira a Simão Pedro, que o homem é mais frágil que mau. Agora eu vou procurá-los e oferecer o pão do amor a esses corações ainda doentes da alma”. O frade infrator não aceitou e rogou que o deixasse fazê-lo em seu lugar, pois fora o móvel de ação infeliz e impensada. E foi assim que Francisco, uma vez mais, nos ensinou que a transformação só é capaz nas ondas do amor fraternal. Após o acolhimento dos ladrões eles se prestaram a ajudar a comunidade franciscana nos mais diversos afazeres, ocasião que encontraram o suporte de que necessitavam para a renovação interior. Somente o amor transforma.

​São tantos ensinamentos provindos da alma de Francisco que necessitaremos de vários séculos para incorporá-los na vivência do amor nas coisas simples da vida, pois como asseverou certa vez o irmãozinho de Assis; “vida simples, necessidade simples”. A beleza da vida está na apreciação interior de tudo que nos cerca, pois Deus se manifesta ao homem através de sua própria obra. Olhar a vida com um olhar de simplicidade e seremos gratos pelo tanto que recebemos indistintamente como manifestação de amor da própria divindade. Vivamos e sejamos felizes, a decisão pertence a cada um de nós. O atributo mais importante recebemos quando nascemos, a vida, então, que seja desfrutada em todo o seu esplendor como nos ensinou o inolvidável mestre de Assis.

​Os exemplos não nos faltam o que nos falta é a boa vontade que é rara. A primavera está de volta.

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