Como não conhecemos Anália Franco?
Viviane Pádua
“Conceber o bem não basta; é preciso fazê‐lo frutificar!”
Anália Franco
Para conhecermos um pouco sobre a vida e vasta obra desta mulher excepcional, faz-se necessário voltarmos no tempo e reconstruirmos o Brasil de 1800. O século XIX foi um período com muitos fatos históricos relevantes. Foi uma época de acontecimentos políticos, guerras e descobertas importantes para a história do país. O contexto histórico do período envolveu a ocorrência de inúmeras batalhas e disputas pelo poder.
Questões como a escravidão, a submissão feminina, o desejo popular por um novo formato de governo eclodia na sociedade brasileira. Neste cenário, nasce Anália Emília Franco, carioca, filha de Sr. Antônio Mariano Franco Júnior e de Dona Teresa Franco, casal que sempre incentivou a emancipação da filha, investindo na sua educação desde sempre.
A menina Anália era considerada um perigo pelos seus vizinhos e donos de livrarias, pois foi alfabetizada muito cedo e tinha na leitura a sua grande diversão. Desde sempre, já estava na contramão do que pregava os valores machistas da época.
Aos 16 anos, começou a lecionar como auxiliar de sala da sua mãe e a partir deste momento, sua atuação profissional e social não parou mais. Empresária, empreendedora, escritora, jornalista, educadora, teatróloga, literata, feminista, republicana, abolicionista e espírita, numa época de grande domínio da Igreja Católica, são alguns adjetivos que marcam a existência desta mulher corajosa e determinada a romper com todos os padrões estabelecidas à época.
Anália não teve filhos biológicos, mas fundou: 71 escolas, dois albergues, uma colônia regeneradora para mulheres, 23 asilos para crianças órfãs, uma Banda Musical Feminina, uma orquestra, um Grupo Dramático, além de oficinas para manufatura de chapéus, flores artificiais, etc., em 24 cidades do interior e da Capital Paulista.
Em 1871, foi sancionada a “Lei do Ventre Livre” no país, quando todos os nascituros de mulheres escravizadas no Brasil Império a partir daquele momento eram considerados livres. Anália já era notável literata, jornalista e poetisa; entretanto, chegou ao seu conhecimento que os recém-nascidos que se enquadravam naquela nova lei estavam previamente destinados à “Roda” da Santa Casa de Misericórdia. Diante de tal fato, inaugurou a sua primeira e original Casa Maternal.
É inconcebível pensar como um recém-nascido sobreviveria sem a atenção e os cuidados da sua mãe. As mães escravizadas colocavam seus filhos na “Roda”, buscando o mínimo de esperança e a possibilidade de sobrevivência dos seus pequenos. Mas, obviamente, as Santas Casas não tinham condições de acolher a todos e esse contexto atravessou profundamente a vida de Anália.
Sem apoio financeiro nenhum, foi para ruas pedir esmolas para sustentar a sua Casa Maternal que funcionava em uma casa velha, pagando de seu bolso o aluguel correspondente à metade do seu ordenado.
Num periódico local anunciou que, ao lado da escola pública, havia um pequeno “abrigo” para as crianças desamparadas. Moça e magra, modesta e altiva, aquela impressionante figura de mulher, que mendigava para filhos de outras mulheres, tornou- se um escândalo. Era uma mulher perigosa, na opinião de muitos.
Ela pediu o seu companheiro Francisco Antônio Bastos em casamento, pois estava sendo perseguida pelos seus feitos e uma das justificativas para tal escândalo era o fato de ser uma mulher solteira. Bastos esteve ao seu lado até a sua morte, em 20 de janeiro de 1919, em São Paulo, aos 66 anos, vitimada pela gripe espanhola.
“O jornal “Atibaiense”, em seu número de 15 de março de 1908, sob o título “Ao cair do Crepúsculo”, escreve com o intuito de fortalecer e valorizar os seus feitos:
… “E quantas Joanas D´Arc existiram, quantas existem e quantas ainda existirão! Aqui, bem perto, temos uma verdadeira benemérita que, cercada de almas altruísticas, trabalha com o fito de afastar as desgraçadas crianças das cruéis garras do vício e da perniciosa atmosfera das tascas, fundando escolas maternais, asilos e creches, oficinas, etc.” (trecho do artigo Anália Franco, FEB).
Como educadora, leva o título de “Grande Dama da Educação Brasileira”, publicou numerosos folhetos e livretos referentes aos cursos ministrados em suas escolas, tratados especiais sobre a infância, nos quais as professoras encontraram meios de desenvolver as faculdades afetivas e morais das crianças, desenvolvendo assim um modelo próprio de educação. Nas suas escolas, as crianças conviviam juntas sem nenhum tipo de distinção, pois Anália acreditava na igualdade e no respeito a todos, independentemente da sua condição.
As concepções adotadas foram diretamente influenciadas pela Doutrina Espírita, pois Anália declarava abertamente a sua convicção e dedicação aos estudos espíritas. E como sabedora dos princípios decodificados por Allan Kardec, nunca impôs a sua verdade dentro das suas instituições. Apresentava-se extremamente liberal e tolerante, tanto assim que a sua obra jamais imprimiu caráter nitidamente espírita, mesmo porque, conforme ela própria explicava, recebia crianças de todas as crenças religiosas, sendo suficiente o ensino das verdades fundamentais das religiões em geral, como a existência de Deus, a imortalidade da alma, e o ensino da mais pura moral, para despertar no coração delas a atividade espiritual no sentido do amor a Deus e ao próximo.
A sua vida foi pautada no cuidado e zelo ao menos favorecidos, atuando firmemente junto aqueles que eram considerados a escória da sociedade: órfãos, prostitutas, viúvas, mulheres abandonadas por seus companheiros. Utilizava todo o seu prestígio e capacidade de mobilização social para reunir as mulheres da alta sociedade em prol daqueles que não tinham voz.
Anália Franco, no século XIX, inaugura na sociedade brasileira o que hoje damos o nome de filantropia, ativismo social, altruísmo e empatia. É impressionante notar que notória existência seja desconhecida por grande parte da sociedade brasileira. Os professores brasileiros desconhecem a ação exemplar desta mulher que inaugurou uma metodologia própria, possibilitando que crianças em situação de total vulnerabilidade e risco social tivessem acesso a uma formação integral e emancipatória. O apagamento que existe de tantas mulheres que trabalharam para construção dessa nação é fruto de uma sociedade patriarcal, machista e sexista. Precisamos agradecer ao movimento espírita brasileiro por preservar, divulgar e manter viva esta memória. O nome de Anália é muito mais conhecido dentro do cenário espírita do que fora dele, revelando o quanto a nossa História oficial silencia uma potência real pelo fato dela ter sido uma mulher que atuou em prol dos menos favorecidos.
Num certo trecho do seu discurso, “o Senador Doutor Paulo Egídio, referindo‐se, de modo especial, a Anália Franco, afirmou, cheio de admiração por esse vulto: “… realmente, não conheço no Brasil uma senhora da sua estatura em dedicação e espírito”. E mais adiante: “Esta mulher está fazendo o que os mais intrépidos homens não fizeram ainda”. (trecho do artigo Anália Franco, FEB).
Hoje, o reconhecimento pelo papel dessa mulher fascinante pode ser encontrado em um bairro nobre paulistano pertencente ao distrito de Vila Formosa, zona leste que leva seu nome, Jardim Anália Franco; assim como, um grande shopping localizado também na zona leste paulistana, no bairro do Tatuapé; além de alguns centros espíritas espalhados pelo Brasil.
817. São iguais perante Deus o homem e a mulher e têm os mesmos direitos?
“Não outorgou Deus a ambos a inteligência do bem e do mal e a faculdade de progredir?”
818. Donde provém a inferioridade moral da mulher em certas regiões?
“Do predomínio injusto e cruel que sobre ela assumiu o homem. É resultado das instituições sociais e do abuso da força sobre a fraqueza. Entre homens moralmente pouco adiantados, a força faz o direito (O Livro dos Espíritos, Kardec).”
REFERÊNCIAS:
– Christo, Eliane de; Lodi, Samantha. Anália Franco – a Educadora e Seu Tempo. Melhoramentos, 2015.
– GODOY, Paulo Alves. Grandes Vultos do Espiritismo. Edições FEESP;
– MONTEIRO, Eduardo Carvalho. Anália Franco – A Grande Dama da Educação Brasileira. Editora Eldorado Espírita, 1ª edição, São Paulo, abril de 1992;
– WANTUIL, Zêus. Grandes Espíritas do Brasil. FEB, 1ª edição. RJ;
– Artigo Anália Franco Bastos. https://www.uemmg.org.br/biografias/analia-franco-bastos. Acesso em 25/01/22;
– Artigo Anália Franco. https://www.febnet.org.br/wp-content/uploads/2018/02/Analia-Franco.pdf. Acesso em 25/01/22;